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Estórias da Saga Baleeira nos Açores - Parte 2

Marino Machado – Antigo Baleeiro
Estórias da Saga Baleeira nos Açores
Por Manuel Cândido Martins e José Henrique Brum

Fotos: Adiaspora.com
Novembro de 2010


 

Manuel Cândido Martins e Marino Machado


Dando seguimento ao nosso trabalho de recolha de depoimentos dos antigos baleeiros das Lajes do Pico, a equipa editorial da Adiaspora.com convidou Marino Machado, irmão mais novo de outro valoroso homem da baleação, Albertino José Machado, a relatar as suas memórias de uma actividade e de um tempo já desaparecidos. Manuel Cândido Martins - que é, por si, uma fonte de informação sobre a saga baleeira na Ilha do Pico de incomensurável valor - conduziu a entrevista, coadjuvado pelo seu amigo José Henrique Brum.

ADIASPORA.COM: Não o tendo conhecido pessoalmente lá, nas Lajes do Pico, só temos conhecimento que arriou à baleia. Que idade tinha quando arriou pela primeira vez?

MARINO MACHADO: Aos 19 anos, tirei a minha cédula marítima, em 1944, e em 1945, principiei a arriar à baleia com Manuel José Machado, o Experiente. Depois arriei como o João Luís. Afinal, arriei em vários botes. Então chegou o dia mais marcante da minha história. Numa manhã de Agosto de 1948, quando a vigia deu sinal de baleia, nós arriámos e fomos para a baía da Queimada - mais propriamente, entre o Castelete e a Queimada, ou mais ou menos na baía das Ribeiras. E aí, eram três bulls. Os Calhetas (referindo-se aos baleeiros da Calheta de Nesquim) trancaram um bull. Penso até que foi o bote do José Medinas. Contudo, o primeiro foi trancado pelo Cisne, que era o bote do Senhor Manuel Moniz Barreto, ou Papuda, como era conhecido por apelido. Nessa mesma altura, quando a linha pegou o Francisco, o filho do Senhor Manuel Moniz, que era o segundo trancador e o remo de sotavento, gritou e pegou na faca para a cortar, mas já não deu tempo. Quando nós recolhemos o Francisco, já depois de morto, ele trazia um bom pedaço de linha com ele. Essa linha estava presa no calcanhar, com uma ponta para aqui e a outra que a baleia puxava. Ora, se a baleia a tivesse feito só tocar nele, teria salvado a vida, pois a linha teria desprendido. Mas não pôde, infelizmente, não pôde. Entretanto, a lancha Aliança passou por nós e disseram-nos, “Há um homem perdido, o trancador do Manuel Papuda, o Francisco Bruques.” Nós trancámos a baleia e o Mestre Manuel, depois de a trancarmos e matarmos, saltou para a Aliança. Estava um bocado nervoso e foi para a Aliança. Nesse dia, o trancador do Mestre Manuel era o José Machado da Rosa, filho do Mestre Tiauguinha, o mais velho talvez. Este ficou então como oficial do bote. Ora, infelizmente, nós não sabíamos que o Francisco estava morto, pois foi o único talvez que aparecesse depois de uma tragédia daquelas. Como era o segundo trancador, o João Materiano foi para a proa. Atrás dele estava o José Severo, o filho do José Senhoura. Puxaram a linha, e atrás estavam os outros também a puxar. Nós puxámos a nossa linha para dentro. Depois pegámos na outra e começámos a puxar. Foi quando o José Materiano deu pelo corpo. Deixou a linha, pois ficou nervoso. Deixou a linha e não queria puxar mais. O José a mesma coisa. O meu irmão disse, “Oh homem, parece impossível vocês deixarem a linha! O homem está preso. Porquê que vocês não puxam para dentro? Já não lhe fazem bem”. Então o Medinas, eu e o meu irmão fomos para trás. Não tivemos medo. Medo não, ficamos um bocado nervosos. Metemos o homem dentro do bote. Era o Francisco Bruques. O Francisco tinha as suas feições naturais, mas com os lábios um pouco arroxeados. Não deitou, talvez, meio litro de água de dentro quando o recolhemos. Depois a Aliança pegou em nós, no bote, pois era a lancha que andava mais naquele tempo, e caminhou para as Lajes. Ninguém quis pegar no corpo. O meu irmão colocou o corpo sobre a quilha da ré do bote. Havia, nesses tempos, umas caixinhas quadradas nas quais costumámos levar para o mar um bocadinho de bolo para comer, assim como vários preparos, anzóis e tudo arranjado para já só engatar no mar. E então, nessa altura, o meu irmão sentou-se em cima de uma caixa daquelas, puxou o corpo a si e deixou-o cair em cima das pernas e dos joelhos. E aí, enquanto a lancha conduzia o bote ao porto, ele esteve sempre naquela posição, porque todos os outros tinham medo. “Tenho mais medo de vocês! Este não me faz mal nenhum! Já está morto!”, dizia o Albertino. Chegámos a terra. Não sei, não sei dizer! Senti uma pena enorme da viúva, e senti aquela gente toda que eu conhecia um pouco chocada. Muitos deles não sabiam o que haviam de dizer, nem o que haviam de fazer, porque até ali, em toda a minha mocidade, desde criança a adolescente, nunca tinha ouvido falar de um caso parecido com aquele no nosso porto. Nunca ouvi! Infelizmente, foi aquele...

ADIASPORA.COM: Outros casos idênticos aconteceram. Não foi o primeiro. Talvez não foi no vosso porto, mas aconteceu noutros. O que provoca essa corrida da linha e aquele nó, porque se não é um nó, a criatura podia ter sido projectada para fora da borda, mas não ficaria amarrada? O que provoca isso?

MM: Não é um nó. A linha é passada a um cepo. Quando a linha é passada a um cepo, passa no braço para depois passar no cepo, que é um bocado de madeira que há na ré do bote. A linha depois corre direita, mas por vezes torce. Foi nessa altura que pegou o trancador, pegou-lhe pelo pé e levou-o. Não podemos dizer se pegou no pé, ou se pegou numa mão e depois desceu até ao pé. Infelizmente, foi uma coisa tão rápida que não se pode dizer como é que se deu. Segue-se que a rapidez foi tanta que o segundo trancador do bote, o filho do Manuel Moniz, não teve tempo para cortar a linha junto do seu pé. Já a cortou com um bocado de distância. Ora, parte de trás da linha fazia força na água e a da frente, a baleia puxava. Ele nunca pôde chegar com a mão ao pé. Foi a infelicidade dele, foi a morte dele. Isto deu-se no dia 15 de Agosto de 1948, talvez pelas nove da manhã. Durante a minha adolescência e já depois de homem, nunca se contou no nosso porto um caso daqueles. Antes tinha-se dado um caso. O Manuel Vieira que, por apelido, chamava-se Garajau, tinha um filho João que era guarda-fios. Mais tarde este deixou aquela actividade e foi para a vida albacória. Não sei se o senhor já ouviu falar nisso, se não. Ele morreu e diz-se que o Mestre Manuel Peixoto o botou ao mar. Quando o encontraram, ele estava com as botas. Morreu por lá, o João Vieira. Mas esse foi diferente, não é? Outro foi o José Soares. A baleia bateu no bote, levou-o às alturas e depois ele caiu. Ele tinha uma parte da testa em prata, ou num material parecido, e ficou com um defeito. Coitado! As companhias não davam nada naquele tempo, nem a capitania lhe dava nada! A família é que sofreu as consequências. Não foi mais ninguém! Todos dizem “paciência”, que eu também dizia “paciência”, mas não podia ajudá-lo! Eu era novo nessa altura, talvez tivesse catorze ou quinze anos, não sei ao certo quando isso foi. Mas esse foi directamente lá, para o Faial. Por exemplo, a viúva do Francisco ficou com aquilo que ele tinha deixado, que ele tinha poupado. Não ficou com mais nada! Não se lembraram as companhias de dizerem assim “ A gente tira um escudo de cada um. Dá duzentos só...” Pronto, mas era uma ajuda. Naquele tempo, um escudo sempre valia alguma coisa!

ADIASPORA.COM: Nesse tempo, provavelmente a miséria era para todos. As companhias vendiam os óleos e também ouvia dizer que os baleeiros “cramavam”(queixavam) porque não recebiam dinheiro se não, às vezes, de ano a ano...

MM:   Sim, de ano a ano e, às vezes, mais do que ano a ano, como eu cheguei a receber. De qualquer maneira, havia injustiça entre o marinheiro e o gerente na venda do óleo, porque era o gerente que o vendia. Estive bem a par disso, porque estive no escritório de um gerente, que era gerente de baleia e de mais alguma coisa: o José Rodrigues da Silva. Estive lá e vi um caso muito sério. O José Rodrigues dizia que o Professor Moniz era ladrão. Estou de acordo com o que dizia, mas não estou de acordo com o que fez! O professor era um santo! O José Rodrigues, nesse ano, foi o vendedor do óleo. Eu digo porque estava presente e vi tudo como foi! Certo dia, o José Rodrigues disse assim, “Oh Marino, abre a porta ao Professor Moniz, que ele vem aí.” No seu escritório havia uma janela, de onde ele avistava o Largo da Matriz. Ele viu-o e eu fui abrir-lhe a porta, mas deixei a minha porta um bocadinho entreaberta, porque o meu escritório era logo ali, e deixei assim uma beirinha aberta. O José Rodrigues disse, “O óleo é vendido a 9 e 20. Dizia o professor, “Vinte é para nós.” - para ele e para o José Rodrigues. Respondeu o José Rodrigues, “São dez centavos. É bastante para nós, que eles é que vão apanhá-lo, não somos nós!” O professor disse, “Há-de ser vinte!” E o José Rodrigues disse, “Não! O outro repetiu-se e o José Rodrigues enfiou-lhe um murro em cima de uma secretária que lá tinha. Quase que a quebrava. “É dez, é dez! Quem manda sou eu!” E o Professor Moniz, ao descer as escadas – foi no segundo degrau das escadas, nunca me esqueceu, porque eu fui fechar a porta – disse, “Oh José, (até aí, tinha-o tratado por senhor), tu vendeste o óleo este ano, mas venderás mais, ou não?” O José nunca mais vendeu o óleo enquanto eu lá estive. Estive até 1959 por lá, e isto foi em 1958. O José nunca mais vendeu óleo! E quando passei pelo Caminho Novo, ele disse-me assim, “Oh Marino, uma coisa vou dizer-te: o que se passou aqui, não é da rua. É daqui. E o que se passou na rua, é daqui.” Eu passei o Caminho Novo e já toda a gente estava a dizer que o José Rodrigues era um ladrão, que queria o dinheiro todo deles, porque assim, porque assado. Passei e não disse mais nada. Fui direitinho para casa. Vi o Professor Moniz fazer aquilo. Ele já está lá, como eu hei-de ir também. Assim, a nossa vila perdeu muitas coisas que devia ter. Por exemplo, a fábrica do peixe. Talvez a Câmara deveria ter pegado naquilo e a tivesse aguentado, para termos ainda uma indústria que era a riqueza daquela vila. Era a riqueza daquela vila. Como podia viver o pobre naquele tempo? Hoje em dia, dizem que é por haver tão pouca gente, não é? Por exemplo, que o concelho tenha cinco mil pessoas, a vila quinze mil. Quando vim de lá, tinha vinte e cinco ou vinte e sete. Vejam lá! Chegou a ter vinte e oito mil, entre 1917 e 1918, porque era no tempo em que havia o vinho verdelho. Este saía de lá e ia até à Rússia, para os czares. Foi sempre assim! O pobre é que paga!

ADIASPORA.COM: A vida era difícil para todos e claro, todos “cramam “. Havia aqueles que deveriam ter olhado o bem dos seus trabalhadores, aqueles que ganhavam o dinheiro e não reconheciam o seu esforço...

MM: Na vila, na Casa das Senhoras, havia o João Lacerda. O senhor conheceu-o. O João já tinha uma certa idade quando tomou da gerência. O Moniz era um homem novo e professor. Mas há uma coisa. O João Lacerda tinha uma regra muito economicista. Era muito economicista! Foi sempre. Chegava uma carregada de lenha, por exemplo, de achas para derreter as baleias. Ele passava-as todas ao seu braço contadas, para as pôr lá dentro. Trazias no carro cinco caixas a mais. Ele dizia, “Leva-as para trás, para as trazer de outra vez.” “Ah homem, ficam aí!” E ele insistia “Não, não ficam, senão não abate-se mais lenha para a companhia!” E já se sabe, o Professor Moniz disse alguém que ele já era velho, já era caduco, que havia de sair. Ele disse que sim. Ele foi um dia, juntou a gerência e disse, “O João Lacerda está a ficar um pouco caduco. Deve deixar a gerência que tem, mas ficarão outros que serão, ou não, fiéis ao mandato!” Não disse mais nada. Depois disso, disseram que o Professor Moniz era ladrão...

ADIASPORA.COM: Por causa das palavras que ele disse, disseram que Professor Moniz era ladrão?

MM: Ele não era ladrão. Ele arrumava o que estava mal arrumado, porque nós não sabíamos arrumar. Nós ignorantes, não sabíamos arrumar. Ele é que sabia arrumar. É verdade ou não é? Eu aqui, no Canadá, trabalhei sete anos - não com carteira da “união” (do inglês “union” ou sindicato), mas com um permit (autorização ou licença) – na “Harbour” (nas docas). Mal pude, escrevi para Queens Park (sede do Governo Provincial do Ontário), para o representante do meu riding (distrito eleitoral no Canadá), que, nessa altura, era o Minister of Labour (Ministro do Trabalho). E este respondeu, dizendo, “Amanha cem assinaturas, amanha cem assinaturas. Este assunto tem de envolver as “uniões” (os sindicatos), tem de as envolver.” À altura, havia mais trabalhadores a laborarem com permit do que encartados pelas “uniões”. Teve um que assinasse? Nem sequer um compadre meu quis assinar! Eu queria arrumar, mas eles não deixaram! Foram os da “união” que arrumaram. Eu não sabia arrumar, pois eu não tive quem me ajudasse! É verdade, ou não é? Não tive quem me ajudasse! Se não fosse a “união”! Vamos lá ver. Naquele tempo, no Pico, no tempo em que eu fui arriar à baleia, quem é que sabia fazer uma letra! Eu não sabia. Eu dizia que sabia ler, mas eu não sabia tampouco. Eu dizia assim, “Eu sei ler.” Tinha feito o segundo exame, mas não sabia ler! Agora aquele tinha feito o liceu (referindo-se ao Professor Moniz). Sabia arrumar os seus pratos (metáfora alusiva aos problemas)! Eu não sabia. Eu deixava os meus por cima da mesa, ele pegava e arrumava-os. Pronto! E não havia ninguém que dissesse nada, porque se um dizia alguma coisa, ia embora para a rua! Não arriava mais à baleia! Está a perceber? Havia muitas coisas, infelizmente. Aquele povo sofreu muito e soube sofrer. Hoje em dia, não há fé como havia antigamente. Não sabem sofrer como os antigos sofreram. Não querem, não querem!

ADIASPORA.COM: Voltando às baleias, que era o assunto do qual estávamos a falar, quando arriava, ou ouvia o foguete na vigia, deixavam tudo e caminhavam?

MM: Senhor, quando arrebentava o foguete em terra - o vigia nessa altura era o Senhor Francisco Barreto, ou Francisco da Vigia – podiam estar a cinco quilómetros de distância, mas experimentavam a correr, experimentavam a correr! Uma vez, o meu irmão e o padrinho estavam a cavar vinhas naquele bocadinho, na Ribeira do Cabo. O Senhor Luís pegou neles, na camioneta, e levou-os. Mas correram de lá! Corria-se e ia-se sem pão! Ia-se sem pão nem bolo, porque íamos embora para a baleia. Muitas vezes não levávamos pão. Às vezes, pela manhã, passávamos pela padaria para pegar num bocadinho de pão para levarmos, porque se nós não arriássemos, aquele pãozinho não se pagava. Ia-se comer bolinho para casa, e aquele que o tinha era muito bonito. Aquele que não o tinha, passava mais mal.

ADIASPORA.COM: Mas nos botes havia sempre umas bolachas armazenadas, ou algo semelhante, uma massa torrada e rija. Como chamavam isso?

MM: Chamavam “roscas” àquilo. Havia um keg que era das roscas. Era aberto na última hora. Eu arriei uma arriada com o Senhor Manuel Joaquim, o Sena, que era o pai do Moreira. Arriei com ele num bote, em que era o Manuel Materiano, da vila, que o proava. Arriámos de manhã. Chegámos ao meio dia, ou à uma, e como o que levávamos para comer era pouco, começámos a “cramar”. O Senhor Manuel tinha lá, na sua bolsinha, um bocadinho de bolo e queijo. “Vocês têm fome? Vão acolá, à minha bolsa, mas não se abre o keg!” Disse o Manuel Materiano, “Sou sócio desta companhia e porquê que não abrem o keg se nós temos fome, pois eu também pago por ele?” “Oh homem, não se abre ainda! Credo! Está acolá bolo e vocês comem o queijo.” Um quartinho de bolo e bocadinho de queijo! O Manuel Materiano, quando chegou às três ou quatro da tarde, disse, “Não, não espero mais!”. Pegou e foi abaixo ao leito, tirou o keg para fora. Tirou as roscas e havia bolor deste tamanho! “Oh maligno, amanhã vou à capitania fazer queixa de ti! Não podes ter isto no bote. Deves revistar o keg todas as semanas, porque isto é no mar e há humidade. Deves revistar tudo, para ter isto em ordem!” Qual o quê! Ele não foi à capitania! O Manuel Materiano, coitado, para ver se a gente comia ainda, foi molhá-las na água salgada e limpou-as, mas acabou por dizer, “Oh rapaz, não presta! Não se pode comer nada disto!” Deitaram tudo ao mar, tudo! E quer-se dizer, nós pagávamos aquilo. Diziam que era a companhia, mas nós pagávamos também.

ADIASPORA.COM: No meio disso tudo, o que havia para beber?

MM: Havia água. Não se deixava faltar a água! Era a melhor coisa! Era um barril pequeno e outro maiorzinho. Era no verão que bebiam aquilo, mas de toda a forma, ia-se buscar a água logo pela manhã. Antes da vigia descobrir, tinha-se de ter água no bote. Ia um hoje, outro amanhã. Iam à casa do Francisco Carlos, o irmão do João Carlos, que tinha casado com uma mulher dali, do porto, e tinha tanque. Ele dava. Nunca disse que não dava água para levarmos no bote!

ADIASPORA.COM: Quanto tempo levava uma viagem na caça à baleia. Saíam de terra e quanto tempo demoravam a regressar?

MM: Era sempre um dia. Por exemplo, uma vez, no tempo em que eu arriava com o Manuel da Emília, fomos para fora da Graciosa balear naquele canal. Não trancámos baleia, mas tínhamos o direito de ser rebocados atrás da lancha. Viemos e chegámos às quatro horas. Todos pediam para comer, mas não havia nada. Já o keg tinha andado! Tinha andado tudo! Não havia nada! Só uma pinguinha de água, mas era para racionar! Fomos rebocados toda a noite. Chegámos, talvez pelas oito e meia, nove horas, à Prainha do Galeão, na Madalena do Pico, que já não ficava muito longe do nosso porto. Encostou-se lá para ir buscar alguma coisa para comermos. Chegámos lá. O Manuel, um cantoneiro que tinha estado lá para as bandas das Lajes e a quem lhe chamavam o Bacalhau, chegou abaixo, ao porto. A Prainha ainda fica um pouco distante do porto. Ele foi lá buscar comida para nós. Trouxe muita comida, muita fartura e isto num domingo! Trouxe muita comida, mas nós não a comemos. A fome tinha sido tanta que um bocadinho de bolo já enchia o estômago. Ele levou-a para trás. Disse, “Para quê que eu vim?” Trouxe muita linguiça, inhames, bolos e vinho, mas já havia pouco apetite para comer. Tínhamos aquela coisa no estômago, mas mal começávamos a comer, já estávamos cheios! Ele disse mesmo, “Levo isso para trás porque é um pecado deitar fora, mas eu nunca devia ter ido buscar nenhum, pois vocês não comeram.” Tinham aquela coisa no estômago, mas ao começarem a comer, ficavam logo cheios. Eram 11 homens...era o maquinista, era o mestre...não, afinal eram dez homens.

ADIASPORA.COM: Noutros portos baleeiros, como a Calheta de Nesquim, quando o foguete ia para o ar – no meu tempo eram foguetes, mas mais tarde eram bombas – as mulheres dos baleeiros, assim que o ouviam, preparavam o mais rapidamente possível o farnel e corriam para o porto. Os baleeiros estavam nas terras e noutros lugares e iam directamente para os botes. Já não entravam em casa. Nas Lajes do Pico, isso não acontecia...

MM: Porque o homem do Pico tem um pé no mar e outro em terra, mas mais na banda da Calheta de Nesquim do que nosso lado (referindo-se às Lajes do Pico). No nosso lado, muitas das vezes as mulheres não iam. Cheguei a andar três quilómetros com eles – aquilo era muito longe - e passei por uma casa onde, desde criança, eu trabalhava, mesmo que fosse só por comida. A mulher já estava cá fora, com pão e bolo – naquele tempo era bolo – inhames e um bocadinho de linguiça, porque tinham matado o porco há pouco tempo. Mas nem todos faziam isso. Nem se lembravam muita vez. Podiam passar pelo botequim e comprar um pão, mas por norma não se lembravam. Com aquela cegueira de correr, não se lembravam de comprar pão! Quando chegava a hora de comer, da fome, é que eles diziam, “Oh homem! Eu devia ter comprado um pão! Oh homem, estou sem comida!” Tinha dessas coisas. Eu lembro-me que, certa vez, chegou-se às seis da tarde e eu tinha um bolo de forno. Não era grande, pois um bolo de forno é mais pequeno do que o de tijolo. Foi repartido por seis ou sete homens e nenhum perguntou por conduto, nenhum perguntou por alguma coisa para acompanhar o bolo, por queijo, por linguiça ou outra coisa qualquer. Nenhum perguntou. Comeram-no, assim limpinho, num instante!

ADIASPORA.COM: A caça à baleia não era uma profissão como outra qualquer, porque os que vão para os seus trabalhos, antes de caminharem, preparam os farnéis e as suas coisas para levarem. Contudo, na baleação, ninguém pensava em comida. Era só correr e andar!

MM: Era. Infelizmente, era. Muitas vezes estávamos na pesqueira, arrebentava o foguete e o padeiro estava a passar e nós deitávamos a mão a um pão. Ora, um pão, para certos homens fortes - está bem para mim que era fraco – o que era para as quase vinte e quatro horas que passavam no mar? Não era nada! Não era nada! Por isso digo que o homem, principalmente no nosso lado, era muito resistente. Era um homem cheio de coragem e força. Tinha uma coragem imensa! Porque a vida era arriscada e a fome presente. E tudo, ele vencia! Tudo ele vencia! Hoje em dia, não há isso, mas naquele tempo havia. O homem do meu tempo – já estou aqui, no Canadá, há cinquenta e um anos – o homem do meu tempo lá, era um homem cheio de muita coragem. Mas antes deles, houve aqueles que formaram e desbravaram a terra, onde semearam o primeiro grão de trigo e o primeiro grão de milho. Onde foram buscar esses homens o alimento para tanto tempo que passaram desertados acolá, naquelas terras? Edificaram paredes - um sinal que deixaram e que nunca mais desaparecerá, nem será arredado da história – por um pé de vinha, por um cacho de uvas!

ADIASPORA.COM: A vida era difícil naquele tempo, mas sobreviveram e deixaram uma vida melhor para os que lá estão hoje. No entanto, estes também passam algumas dificuldades. Então quantas mais não passariam nessa altura?

MM: Senhor, eu acredito. A minha avó dizia que ia com as irmãs passar lenha - não havia lenha até às casa, como nós temos hoje - da serra, pelas criações, por onde lhe autorizavam a passar, para a ir vender na vila a um pataco cada feixinho, ou algo assim. Dizia ela, “Passei muitos dias a ir à lenha mais a minhas irmãs. Eu era a mais novinha e, por isso, até trazia pouquinho. Dias passados a cebola, bolo e água da fonte clara!” Havia homens para quem cem quilos não era nada! Ainda apanhei um da Ribeira do Meio e que foi o maior arpoador dos Açores: o Manuel Palim. Foi o maior arpoador dos Açores e não havia nenhum que o batesse!

ADIASPORA.COM: O Palim era um homem forte. Foi um amigo meu quando eu, ainda rapaz, aparecia por lá. Eu levava maçarocas de milho e ele amarrava-as num arame e punha-as no azeite a ferver (durante o processo de derretimento da baleia).

MM: E quantas ele pôs, rapaz! Roubava batata-doce dos canteiros, para cortar e botar no azeite! Mas havia altura certa para as botar. Não se podia botar de qualquer forma e feitio! Quando se tirava os torresmos loiros (de baleia) para fora, é que era altura de botar lá dentro. A rapaziada chegava lá e o oficial de serviço nos potes de derretimento dizia assim, “Não ponham! Não ponham!” E não punham! Uma maçaroca enfiada num arame por lá baixo e ficava enxuta, sem óleo nenhum e sem qualquer sabor. Não tinha gosto nenhum! Havia quem provasse daqueles torresmos. O torresmo, depois de tirado do pote, loiro, não dá gosto a baleia. Quando a baleia é fresca, não dá.

ADIASPORA.COM: O milho que se comia quente tinha um gosto saboroso. Só depois de arrefecer é que não era lá muito jeitoso. O Manuel Palim era um homem corpulento. Tinha os pés grandes e andava sempre descalço! Contavam que tinha andado na tropa, onde não lhe deram botas ou não tinham botas que lhe servissem. Não sei se é anedota ou como foi. Lembra-se disso?

MM: Fizeram umas botas próprias para ele! Foi! Não havia botas que lhe servissem. Tiveram de fazer umas próprias para ele! Mas o Palim era um homem valente. Eu vi, ao descarregar o vapor, algumas das suas proezas. Uma foi com aquelas sacas de açúcar de cinquenta quilos. O Senhor lembra-se que se descarregava na prancha? Eu ainda era rapaz nessa altura e não trabalhava no vapor. Ele pagava numa saca de cinquenta quilos em cada braço e andava para a casa do Mestre Manuel, que era ao pé da casa do Edmundo, a casa do João de Deus Macedo. Ele ia para lá, mas caminhava descansadamente. Ainda se fosse preciso, fumava um cigarro pelo caminho. No trabalho então ele nunca fumou. Nunca me lembro de ele ter fumado! Era um homem que não queria nada. Era a vida da baleia só. Nem sequer ao mar, à pesca, ele queria ir. Era muito malandro, mas à baleia nunca faltava! Olhe lá, o Manuel não passava à igreja que não ajoelhasse duas ou três vezes e se benzesses e pedisse à Senhora de Lourdes a sua bênção. Uma vez, o bote estava à beira de água e o João Abraão estava à espera dele, e ele fez a mesma coisa. Quando chegou, o João Abraão perguntou-lhe, “ O que estiveste a fazer para acolá?” O Palim respondeu, “Não queres? Vai-te embora. Vai-te embora! Leva outro contigo, que eu arranjo bote para arriar!” E arranjava, em qualquer bote ele arriava ali. Era um homem muito valente. Era muito forte. Houve três rapazes novos – um ainda é vivo: o filho do António Manuel da Silveira, o que morreu na América e os outros eram o filho do António Manuel, da vila, e o filho do Zeca Rocha – que ainda o puseram como velhinho. O velho levou trezentos quilos em cima de si, por aqueles baldios do Caneiro fora. Aqueles baldios tinham um patamar acima. Lembra-se? Pois ele levou trezentos quilos até lá!  

ADIASPORA.COM: Diziam que ele não queria fazer muita coisa, mas quando apanhavam baleia, estava sempre presente! Eu tinha curiosidade, não sei porquê. Havia alguma coisa que me atraía! Eu era rapaz e gostava de ver aqueles movimentos, e ele estava sempre a trabalhar ali de volta!

MM: Era obrigado a estar ali para ganhar a soldada. Porque se não o fizesse, cortavam-lhe a soldada e metiam outro homem no lugar dele. Ele tinha uma coisa: era muito bem ensinado! O homem do Pico - como já lhe disse e o senhor sabe isso muito bem - tem um pé em terra e outro no mar, para poder viver. E é mal ainda! E é mal! Quando não tiver como viver do mar, há a terra. Tem de se virar para a terra. A maior parte dos marinheiros lá têm a sua casinha e uma hortinha para cultivar. Naquele tempo, havia lavradores, havia pessoas que davam terras para regar, mas o Manuel Palim nunca regou nenhuma! Nunca foi regar um bocado de batata-doce para comer! Nunca foi! Talvez tenha ido uma vez ou outra, mas não me lembro. Um dia fui chamá-lo para ir para o mar. O meu mestre disse, “Trá-lo contigo, senão ele nunca mais vem!” Chamei por ele, a mulher também, mas ele não se apressou. Por fim, o Manuel lá veio e disse, “Anda para dentro!” Ele tinha uma cozinhinha. Era terreira, mas estava limpinha. Ele tinha lá um caldeirão, pois naquele tempo não havia tachos. Era um caldeirão onde tinha a sua pensãozinha. Eu disse-lhe, “Vou para aqui para fora.” “Não, não, deixa-te ficar aqui sentado.” Ele esteve a comer. Descansadamente, pôs uma tigela (o senhor sabe, daquelas tigelas a que nós chamávamos "Loiça de Figueira”, de quarta), escorreu o caldo para um balde e colocou as couves escoadas na tigela. Não sei se tinha alguma batata dentro, ou se não. Não vou a juramento. Depois puxou da caniçada um bolo de tijolo, mas com duas polegadas de altura. Em nossa casa não comíamos daquele bolo assim. O nosso era muito delgadinho, para ficar bem cozido. Ele fazia assim: cobria um bocado de bolo e ia às couves. Não percebo o que era aquilo.

ADIASPORA.COM: Antigamente, acho que faziam isso...

MM: Eu vi aquilo. Pareceu-me que aquele bolo era para levar para o mar e para comer lá, mas não foi. Foi para comer naquela ocasião. Nós fomos para o mar, talvez, ao meio dia e viemos para terra às seis horas, e aquele homem nunca mais comeu nada. Queríamos-lhe dar para ele comer, tanto eu como o mestre. Ele disse, “Não tenho fome nenhuma.” E não comeu mais nada! Também podia comer dois bois que nunca alargava o cinto, porque eu o acompanhei então nisso. Nunca! Era um homem sadio. Era um homem sadio. Eu tinha um compadre meu, que era da Piedade: o Samuel. O senhor conheceu-o?

ADIASPORA.COM: Sim...

MM: Um dia os de cá, das Lajes, estavam a balear na Mainha. Não estava bom mar. Ele veio por lá fora e foi ter à casa do António Manha, que era o sogro do Samuel. Perguntou pelo António Manha. Este estava no quintal juntando pedra para fazer mais um bocado de terra qualquer e fazer um maroiço. “Oh António, como estás?” Eles conheciam-se. O Samuel disse-me, “Eu tinha lá uns cestinhos cheios de pedra para mim já. Já era bem bom.” Ele chegou lá e perguntaram-lhe, “Para onde vais?” “Oh homem, eu vim por aqui fora. Tu não tens uns cestinhos maiores do que estes?” O António Manha respondeu que não tinha. Disse ele para o Samuel. “Oh Samuel, vai buscar os ceirões da burra.” Ele foi buscar e eles encheram-nas de pedra. O Manuel Palim pegava com a mão por baixo, punha a outra e punha os ceirões às costas e ia-se embora. Disse-me o Samuel, “ Se fosse eu, eu não podia com ela, eu às costas não podia com ela!” Mas o Manuel pegava naquilo com uma mãozinha e punha às costas e ia-se embora!

ADIASPORA.COM: Tenho recordações dele, porque assim que ele me visse por ali, vinha logo ter comigo. Às vezes, cortava um bocado de carne de baleia para eu levar quando eu ia à pesca dos sargos.

MM: Mesmo para aquela Silveira, ia muita carne de baleia. Aquilo foi uma falta muito grande que fez.

ADIASPORA.COM: A carne de baleia era boa para comer?

MM: Era boa como a carne de toninha (golfinho).

ADIASPORA.COM: Os japoneses comem muito dessa carne.

MM: Eles lá provaram daquela carne, não a da baleia velha, mas da outra mais nova. Provaram e disseram que a única diferença era que a febra era mais grada do que a outra (alusão à carne de toninha). Diziam eles. Eu nunca provei, como eu nunca provei peixe de gato e eles comiam-no por lá. Eu nunca comi peixe de gato.

ADIASPORA.COM: Existem vários peixes que não se comia antigamente. Não sei se o faziam nas Lajes, mas nós (aludindo às gentes da freguesia de São João), por exemplo, quando se apanhava o peixe-porco, deitávamos novamente no mar. Agora, já toda a gente come peixe-porco em restaurantes por todo o lado.

MM: Estive em 1999, no Pico. Vim do Faial e arriei na Madalena para comer, como diz o outro. Comi bife de peixe-porco. Foi um peixe que comi, saboroso. Gostei de comer. Quando vim de lá, nós não comíamos peixe-porco. Botávamo-lo ao mar, mas quando fui lá em 1999, comi e gostei. E foi lula grelhada. Também gostei muito.

ADIASPORA.COM: Naquelas suas andanças quando era novo, quando andava à baleia, como era a vida em casa quando chegavam a terra? Sentiam-se bem? Sentiam-se cansados? Sentiam-se esfomeados?

MM: Por vezes, sentíamo-nos esfomeados e cansados, porque, de verão, não havia muita vez uma aragem ou vento. Remava-se todo o dia até empolarem, por vezes, os quartos e as mãos. Remava-se todo o dia para ver se trancávamos uma baleia. Já se sabe que chegávamos cansados muitas vezes, e queimados do sol, porque o sol do mar é diferente do sol terrestre. É diferente. Mas chegavam e comiam. Daí a duas ou três horas já estavam a modos de ir para o mar outra vez. Daí a duas ou três horas, caminhavam logo com a sua caixa, com os seus preparos, para o mar outra vez. Não paravam e, às vezes, chegavam só mesmo à Lagoa e preparavam logo o bote. A mulher estava ali com qualquer coisa para levar e já pegavam e iam para as gatas toda a noite, a puxar para cima e para baixo para ver se apanhavam.

ADIASPORA.COM: A pesca das gatas aconteceu no tempo da Guerra. Não me consta que isso tivesse acontecido antes ou depois desta. Por que razão?

MM: As razões, não sei. Aproveitavam o óleo delas e o peixe e a pele, mas não sei qual era a finalidade. Eles tinham exportação para aquilo tudo, naquele tempo. Mas aquilo acabou, certamente, conforme acabou a baleia. Ainda acabou mais cedo. Mas há uma coisa a ver: nós, por exemplo, tínhamos as baleias, mas de inverno íamos às toninhas. Hoje não se pode apanhar. Não sei como os nossos marinheiros vivem hoje. Talvez mais apertados do que naquele tempo num sentido, mas noutro, vivem mais à larga, porque têm outras modalidades de vida que o antigo não tinha.

ADIASPORA.COM: Mais tarde, viemos a descobrir que as toninhas que conhecíamos por lá eram golfinhos. Depois de conhecer a inteligência e as habilidades destas criaturas, houve então mais receio de as matar.

MM: Bem, eu concordo com isso. Dizem que a caça à baleia no Japão está prestes a acabar. Parece que o Japão assinou, ou quer assinar, para não haver mais caça à baleia naquele país. Mas tem havido sempre baleação no Japão e na Noruega. Nestes dois países, continuou a existir a frota baleeira. Só os outros países é que acalmaram. O senhor veja lá uma coisa: não sei em São João, mas sei que os das Ribeiras vinham para cá. Parece-me que todos na Fronteira do Sul comiam carne de toninha. Não sei se outros o faziam, mas todos da Fronteira do Sul comiam-na. É bem saborosa. E uma coisa: nós podíamos comer a carne de toninha na Quaresma, mas não a carne de vaca. E esta!

ADIASPORA.COM: Isso é um assunto que não podemos discutir. Os padres é que nos impunham essas regras. Havia as bulas, etc., pelas quais nós nos regulávamos.

MM: A bula! Não sei se conheceu o negociante Manuel Pereira Ávila. Era solteiro e ia todos anos à desobriga pela Quaresma e comprava a bula. À altura, era o Padre Xavier. Nessa ocasião, o Manuel Ávila acabou de se confessar, comungar e de assistir à Missa e foi ter com o padre à sacristia. “Oh Senhor Padre, queria a bulazinha que costumo levar.” Diz o padre, “ Oh Manuel, não vieram ainda. Quando chegarem, depois digo-te.” O padre lembrou-se que tinha lá umas bulas velhas ainda e quando ele ia a atravessar a igreja e fez reverência perante o Santíssimo Sacramento, chamou por ele e disse, “Oh Manuel, tem acolá aquelas do ano passado.” “São boas, senhor padre?” “São.” “Então tenho a minha do ano passado em casa!” Casou-se e a primeira coisa que disse à sua mulher foi, “Conceição, não quero mais bulas aqui dentro! Tem aquela ainda. Está acolá! Ela é boa para tudo!” E nunca mais comprou bulas! A Conceição fazia a esmola da bula, mas não a trazia para casa! Isto foi certo! O Manuel Pereira Ávila casou já tarde, com setenta e cinco anos ou mais.

ADIASPORA.COM: As pessoas entusiasmavam-se com os dentes de baleia, ou não?

MM: No tempo em que eu arriava à baleia, os dentes eram do bote, de quem que apanhava a baleia. O âmbar era dos marinheiros e da companhia. Entre 1945 e 1950, havia pouca gente que trabalhasse em marfim. Vendia-se um dente aqui e acolá outro. Aquilo era mais ou menos por um copo de vinho. Juntava-se a companha um dia. Algum que quisesse comprar um bocado de queijo ou um bocado de carne e beber um copinho ou dois de vinho, e pronto! Ficavam os dentes vendidos.

ADIASPORA.COM: Pode dizer-nos, mais ou menos, o preço ou o valor dos dentes de baleia naquele tempo?

MM: Não posso dizer. Não tenho ideia!

ADIASPORA.COM: Vinte Escudos?

MM: Talvez menos, porque aquilo era um osso pesado, um material pesado. Não tinha muito valor naquele tempo. Ah! Quantas caras de baleia ficaram ali, naquela Lagoa, quando lhes tiravam os dentes!

ADIASPORA.COM: O osso de baleia era vendido?

MM: Nada! O osso de baleia não se vendia! O osso de baleia só começou a ser aproveitado quando a fábrica SIBIL se instalou nas Lajes do Pico. Os ossos eram então aproveitados para fazer guana (guano ou fertilizante), como lhe chamavam. E a carne era para guana também. Só os intestinos é que eram deitados fora, no mar. Aquilo era uma riqueza que havia acolá, tanto terrestre como marina, porque aqueles adubos eram todos naturais, ao passo que hoje, no Pico, não há adubos naturais.

ADIASPORA.COM: Como era produzido o adubo? Os ossos eram queimados?

MM: Aquilo era em tanques próprios, os chamados autoclaves. Na fábrica SIBIL, no Pico, era extraído o óleo e os ossos eram queimados para produzir guana. Não eram queimados ao lume, mas com uma certa caloria. Ficavam em pó. Era tudo cortado aos bocados, que depois se metia nos autoclaves. Estes eram grandes, pois não caberiam neste quarto!

ADIASPORA.COM: Penso que a história dos baleeiros terminou, mais ou menos, na mesma altura em que a SIBIL se instalou lá, nas Lajes, porque o trabalho baleeiro desenvolvido a partir de então era diferente.

MM: Não. A SIBIL instalou-se lá por volta de 1957. Não tenho bem a certeza da data exacta, pois quando estive no Cais do Pico, a fábrica ainda não existia. A pesca à baleia terminou somente em 1987! Em 1987, apanhou-se a última baleia. Não sei como o nosso povo, na ilha, pode viver, porque não trouxeram outros preparamentos para vida do que aquele. Faltou a baleia. Faltou o óleo da baleia. A baleia dava para muita coisa. A carne de baleia, antes da fábrica, era utilizada em muitas coisas. Muitas! Era utilizada para alimentar porcos. Era utilizada para pescar sargos. Era utilizada para fazer uma caseira para melancias ou abóboras. Era um adubo que se usava. Quer se dizer, tinha mais do que uma valência e, alem disso, era muito apropriada para os nossos marinheiros, porque estes viviam do mar e da terra.

ADIASPORA.COM: No meu tempo, o óleo da baleia era utilizada para iluminação em casa, na candeia. Fazia um bocado de fumo...

MM: O petróleo era pior! Víamos no vidro da candeia que o petróleo era ainda pior!

ADIASPORA.COM: Qual foi a primeira freguesia, na Ilha do Pico, a aderir à caça à baleia? Foi o Cais do Pico?

MM: Não. Foi a Calheta de Nesquim.

ADIASPORA.COM: Foi pelo Capitão Anselmo, que depois de andar nas baleias...

MM: Esse homem embarcou para a América...

ADIASPORA.COM:...de salto, numa baleeira, como diziam naquele tempo...

MM: Ele foi uma espécie de Portuguese Joe Silvey, que embarcou com doze anos de idade e foi parar na British Colúmbia, no meio dos índios, e lá fez a sua vida. O Portuguese Joe não era muito tapado, porque fez barcos para a pescaria e ainda fez a rede, a primeira rede de pesca que se botou naquelas partes. Ele obteve a licença e fez a sua própria rede. Não era tolo! E ele embarcou com doze anos! Vi a estória dele há pouco tempo (alusão ao documentário sobre a vida de Portuguese Joe Silvey, passado recentemente num canal televisivo canadiano). O Capitão Anselmo disse, “Comei a minha carne!”, quando, certa vez, ficou no mar, numa baleia morta, sem que a baleeira chegasse ao pé dele. Por apelido, também lhe chamavam Capitão Frei. Uma vez, foi convidado a levar uma baleeira que estava no Faial, carregada de azeite, à América. Ele é que a levou lá.

ADIASPORA.COM: Na sua opinião, qual foi a maior companhia baleeira do Pico?

MM: O Capitão Anselmo montou a sua companhia só com um bote e uma lancha, parece-me. Depois veio o José Cristiano, que se juntou a ele mais tarde.

ADIASPORA.COM: Não havia lanchas nessa altura...

MM: Lembro-me de uma lancha. Era a Margarida.

ADIASPORA.COM: Isso já foi mais tarde...

MM: Foi. O Capitão Anselmo foi um homem que deu muita liberdade ao seu povo, às gentes da Calheta, no sentido de as levar para a América. Houve muitos que foram. Às vezes, ele estava com os seus guardas a comer e beber e eles já estavam a embarcar! Punham a roupinha na cabeça e iam a nado para a baleeira, porque havia o Guarda Fiscal, que não os deixava embarcar. E eles iam assim...

ADIASPORA.COM:...como já referimos, de salto.

MM: Sim, de salto. Houve alguns lá, no nosso lado, que estavam, por vezes, nas terras a lavrar. Pegavam e saíam, ainda com as alparcatazinhas nos pés. Punham a roupa à cabeça e lá iam. Os pais iam com eles, pois já estavam de sobreaviso. Estavam seis, sete, oito meses, às vezes, um ano nas baleeiras. Houve um – penso que era da Calheta também - que desembarcou na América com não sei quanto dinheiro que o Capitão Anselmo lhe deu. Bem, o Portuguese Joe Silvey passou um mau bocado para chegar à British Colúmbia. Mas ele ainda comprou uma ilha, e deixou o seu legado! Há muitas estórias! Há muitas estórias!

Manuel Cândido Martins, Marino Machado e José I. Ferreira

 

 

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